filme "A Substância"
o reflexo do que não vemos: uma análise sobre o corpo, o tempo e o que nos é imposto no ser mulher.
duas horas antes da sessão de "A Substância" (2024), eu me olhava no espelho, alheia ao tema central do filme que logo assistiria. julgava o ganho de peso dos últimos meses, a barriga marcada por duas gestações, e as linhas de expressão próximas aos lábios ("quando elas apareceram?").
questionar minha aparência diante do espelho se tornou um hábito tão comum na minha rotina, que só na sala de cinema, ao ver o jorro de sangue do corpo odioso em cena, é que me dei conta da mensagem da cineasta francesa Coralie Fargeat: nunca nos sentimos boas o suficiente, não importa a idade.
a primeira cena do filme apresenta o argumento: uma substância é aplicada a uma gema de ovo, que se divide, formando uma nova versão, livre das imperfeições da original. e na sequência, em cores saturadas, vemos um nome na calçada da fama sendo contemplado por visitantes, até cair no esquecimento com o passar dos anos.
é um filme profundamente sensorial. as cores, o figurino repleto de símbolos – como o casaco amarelo da protagonista –, o design de som, e os enquadramentos sufocantes criam uma imersão visual e sonora impossível de ignorar.
a protagonista, lindamente interpretada por Demi Moore (e isso já carrega um subtexto da vivência da própria atriz envelhecendo sob os holofotes de hollywood), não sabe existir fora do ideal cultural e social associado à fertilidade – isto é, a capacidade reprodutiva na admiração pelo corpo jovem. depois de ter sido uma estrela de cinema, ela agora comanda um programa de ginástica na TV.
o tempo atrelado à produção de óvulos é parte das falas iniciais a respeito da personagem, ditas por um homem mais velho, sobre sua substituição no programa. ela já não serve. "a produção dos óvulos começa a cair aos 25 anos, sabia?".
em seu apartamento, vemos um enorme retrato ocupando a parede, de seu corpo jovem. lembrei de "O Retrato de Dorian Gray", livro de Oscar Wilde, que li ainda na faculdade. assim como no livro, a separação entre a aparência externa e a degradação interna surge como uma crítica à sociedade que valoriza a beleza superficial, ignorando as consequências morais e emocionais disso.
quando a protagonista se vê no espelho antes de iniciar o experimento, julgamos junto com ela as curvas, a pele, os detalhes do corpo. naturalizamos a insegurança a ponto de deixarmos de ir a lugares por medo do julgamento. é uma guerra de ódio a nós mesmas.
a "substância" surge como uma solução para recuperar o ideal da juventude. quantas de nós aplicamos "substâncias" para parecer mais jovens, mais magras, mais "aceitáveis"? a regra ali é a de que as duas versões não podem coexistir; elas são uma só. também uma mensagem sobre nunca estarmos no tempo certo na nossa própria existência.
o horror corporal, um gênero já conhecido no cinema, cresce à medida que o uso abusivo da "substância" causa transformações permanentes no corpo, criando um incômodo visual difícil de digerir. senti, em cada gota de sangue derramada em violentos golpes, todo o ódio que carregamos contra nós mesmas. era como se Fargeat nos fizesse sentir o impacto do nosso próprio julgamento destilado a nossos corpos.
a violência é necessária. ela é um alerta.
esse "ideal" que nos é imposto como critério de valor no ser mulher nos fere fisicamente, nos cala, e nos isola. o que as palavras de Simone de Beauvoir deixam bem claro (trouxe Beauvoir em outro texto aqui):
"a mulher, que foi educada para se considerar um objeto de atração sexual, percebe que, com a velhice, ela se torna invisível aos olhos do outro. para o homem, a velhice é uma ferida que pode ser disfarçada; para a mulher, é a negação de tudo o que ela foi ensinada a ser."
e por vezes não sei se sou eu ou a protagonista em cena.
quando é que iremos gritar ao mundo que há uma aceitação de que viver é, sim, transformar-se — e isso inclui o corpo, a mente e a história que carregamos. somos tanto a gema original quanto a dividida. somos a soma de tudo o que fomos e o que nos tornamos.
não se trata de resistir à passagem do tempo, mas de abraçar o fato de que cada mudança em nós é, também, uma evolução. no fim, ser mulher é dar novos significados à nossa própria existência, é resistir ao que nos é imposto.
🥹 o que a gente fala depois disso? Só a enorme vontade de ir ao cinema pra gente prosear ainda mais profundamente sobre o tema. Eu senti aqui o peso da autocrítica a cada palavra que falou sobre ti. Porque isso é sobre nós. Sobre a coletividade, e o que a Simone diz expõe isso, e vai de encontro ao que pontou sobre nunca estarmos satisfeitas. Esse tempo parece não existir, sabe? Mas espero que possamos ainda o fazer. E deste lado da tela eu vejo as beleza e as profundezas fascinantes das atrizes, diretora e de tu que é poeta das narrativas 🥰 Já quero maix!!!!